O F F C L I P P I N G

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Luz no fim do túnel



“Um livro de poesia na gaveta não adianta nada. Lugar de poesia é na calçada”, dizia Sérgio Sampaio, cantor e compositor que se fez nas ruas, nas quebradas, vendo o mundo e tendo o mundo com insumo, matéria-prima de suas obras-primas. Impossível calar-se frente ao novo. Em Cachoeiro, em qualquer lugar, o artista se encontra na incerteza como há muito não se via. O que fazer, como fazer, para quem fazer se não há mais, momentaneamente, o encontro, o coletivo reunido presencialmente, se não há público. Começamos o ano cheio de esperanças, desejamos votos das melhores intenções, um vírus vem e para tudo. Neste momento, o que temos nas mãos?

Há, em Cachoeiro, essa capital secreta de todos nós, que amamos e odiamos em equilibrada proporção, ramos artísticos como em poucas cidades do mundo podemos ver. Há nas águas do Itapemirim algo viral, tal qual o que nos assola hoje. Você respira, surge um criador, um criativo. Fotógrafos, pintores, artesãos, cozinheiros, gamers, rappers, designers, escritores, cantores, atores, bailarinos, performers, palhaços, instrumentistas e por aí vai. Estamos em casa nesse momento com a cabeça fervilhando, com as ideias a mil, com uma saudade do que vivemos, na dificuldade, na luta, saudade da luta diária de sobreviver sabendo que há como sobreviver e correr atrás, subindo e descendo morros em um ônibus da Flecha Branca, fazendo roda de chorinho e hip hop com os mais chegados, gastando o que não tem abastecendo o carro lotado com bateria, guitarra e amplificadores, ensaiando na laje de casa, na sala de casa, no quarto de casa aquele texto que mal damos conta de decorar e mal sabemos pra quem falar, como falar. Pintamos em amarelo telas brancas, desconstruímos rimas pobres para falar de dilemas e amores, fotografamos o céu e a criança na esquina, inventamos sabores. Tudo em casa. Sem saber pra quem, pra quando, pra onde. Cachoeiro sofre ainda mais com essa má perspectiva: não há mais, ou provisoriamente, o Teatro Municipal Rubem Braga. Agredido brutalmente pelas águas das enchentes de janeiro, palco, som, luz e plateia se foram. Em coma, não se sabe quando retorna, como retorna, se retorna. Se haverá palco, se haverá espaço, se haverá público. Falta palco e falta dinheiro. Não para o cachê, mas para pagar as contas. É preciso que se saiba: existem pessoas que abandonam tudo na vida para se dedicarem a arte, para falar algo através da arte, a nadar contra a corrente para serem artistas. E se não há campo para o artista, agora, não há grana, não há como pagar as contas, não há como comer.

Alguns movimentos vêm surgindo em caráter emergencial, aqui e lá, para minimizar esses dissabores. Editais emergenciais de bancos e condescendentes secretarias de cultura tentam aliviar o bolso de quem tem filho pra dar de comer e boleto que não para de chegar. É uma ajuda mínima, importante, mas mínima, porque há algo maior e que movimenta muito mais o âmbito artístico: a rede de contatos. Essa rede, fechada agora, cerceada de se encontrar por conta de uma pandemia.

Falando em cerceamento: artistas massacrados por um governo boçal que, junto ao seu gado, ecoou o canto do “artista mama nas tetas do governo”, “acabou a mamata”, “artista não presta pra nada” e coisa e tal. Vem a quarentena e as lives sertanejas pipocam e batem recordes de público, a televisão vê sua audiência subir como há muito não se via, atores e poetas distraem e cantam para um público carente de ocupar seu tempo em casa, na varanda ou na internet. A cultura cheia de repertório mostrando sua cara sem cobrar nada para um público ceifado de expressão e liberdade. A arte dizendo que ela chega a qualquer lugar de todas as formas.

E é isso: há criação acontecendo por aí, efervescente, querendo luz ao sol. Não há público nem há live na internet que sustente ou substitua o encontro olho no olho, pele com pele. Não há dinheiro. Não há espaço. Não há grandes perspectivas.

E agora?
Boa pergunta. A arte é milenar, surge com o homem nas cavernas representando seu dia em pinturas nas paredes. A representação, a arte gráfica, o jogo de cores, luz e formas nascem espontaneamente pela necessidade de expressão e identificação. O homem é homem porque se vê no outro e o necessita para existir. Para ser quem ele deseja ser. Desejo e realização fazem parte do instinto humano. Nos reinventamos na reinvenção de nós mesmos. Somos uma mistura infinita de tudo e do todo e queremos mais. O mundo retornará, você vai ver. De máscara, álcool gel e abraço. Os abraços serão documentados como formas de expressão consolidadas de amor. O toque será arte, a vida ganhará novos significados assim como um filme feito quarenta anos atrás e revisto com outros olhos hoje. O corpo continua sendo o maior instrumento artístico. Cachoeiro não fica para trás nessa conjuntura. A Praça de Fátima, o Dienner’s Bar, a mesa do Mourad’s, a calçada do Guandú serão o novo Teatro Rubem Braga, o novo palco, a nova ribalta. O aplauso virá pela necessidade e agradecimento. Haverá vida acontecendo novamente, finalmente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário