O F F C L I P P I N G

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Luz no fim do túnel



“Um livro de poesia na gaveta não adianta nada. Lugar de poesia é na calçada”, dizia Sérgio Sampaio, cantor e compositor que se fez nas ruas, nas quebradas, vendo o mundo e tendo o mundo com insumo, matéria-prima de suas obras-primas. Impossível calar-se frente ao novo. Em Cachoeiro, em qualquer lugar, o artista se encontra na incerteza como há muito não se via. O que fazer, como fazer, para quem fazer se não há mais, momentaneamente, o encontro, o coletivo reunido presencialmente, se não há público. Começamos o ano cheio de esperanças, desejamos votos das melhores intenções, um vírus vem e para tudo. Neste momento, o que temos nas mãos?

Há, em Cachoeiro, essa capital secreta de todos nós, que amamos e odiamos em equilibrada proporção, ramos artísticos como em poucas cidades do mundo podemos ver. Há nas águas do Itapemirim algo viral, tal qual o que nos assola hoje. Você respira, surge um criador, um criativo. Fotógrafos, pintores, artesãos, cozinheiros, gamers, rappers, designers, escritores, cantores, atores, bailarinos, performers, palhaços, instrumentistas e por aí vai. Estamos em casa nesse momento com a cabeça fervilhando, com as ideias a mil, com uma saudade do que vivemos, na dificuldade, na luta, saudade da luta diária de sobreviver sabendo que há como sobreviver e correr atrás, subindo e descendo morros em um ônibus da Flecha Branca, fazendo roda de chorinho e hip hop com os mais chegados, gastando o que não tem abastecendo o carro lotado com bateria, guitarra e amplificadores, ensaiando na laje de casa, na sala de casa, no quarto de casa aquele texto que mal damos conta de decorar e mal sabemos pra quem falar, como falar. Pintamos em amarelo telas brancas, desconstruímos rimas pobres para falar de dilemas e amores, fotografamos o céu e a criança na esquina, inventamos sabores. Tudo em casa. Sem saber pra quem, pra quando, pra onde. Cachoeiro sofre ainda mais com essa má perspectiva: não há mais, ou provisoriamente, o Teatro Municipal Rubem Braga. Agredido brutalmente pelas águas das enchentes de janeiro, palco, som, luz e plateia se foram. Em coma, não se sabe quando retorna, como retorna, se retorna. Se haverá palco, se haverá espaço, se haverá público. Falta palco e falta dinheiro. Não para o cachê, mas para pagar as contas. É preciso que se saiba: existem pessoas que abandonam tudo na vida para se dedicarem a arte, para falar algo através da arte, a nadar contra a corrente para serem artistas. E se não há campo para o artista, agora, não há grana, não há como pagar as contas, não há como comer.

Alguns movimentos vêm surgindo em caráter emergencial, aqui e lá, para minimizar esses dissabores. Editais emergenciais de bancos e condescendentes secretarias de cultura tentam aliviar o bolso de quem tem filho pra dar de comer e boleto que não para de chegar. É uma ajuda mínima, importante, mas mínima, porque há algo maior e que movimenta muito mais o âmbito artístico: a rede de contatos. Essa rede, fechada agora, cerceada de se encontrar por conta de uma pandemia.

Falando em cerceamento: artistas massacrados por um governo boçal que, junto ao seu gado, ecoou o canto do “artista mama nas tetas do governo”, “acabou a mamata”, “artista não presta pra nada” e coisa e tal. Vem a quarentena e as lives sertanejas pipocam e batem recordes de público, a televisão vê sua audiência subir como há muito não se via, atores e poetas distraem e cantam para um público carente de ocupar seu tempo em casa, na varanda ou na internet. A cultura cheia de repertório mostrando sua cara sem cobrar nada para um público ceifado de expressão e liberdade. A arte dizendo que ela chega a qualquer lugar de todas as formas.

E é isso: há criação acontecendo por aí, efervescente, querendo luz ao sol. Não há público nem há live na internet que sustente ou substitua o encontro olho no olho, pele com pele. Não há dinheiro. Não há espaço. Não há grandes perspectivas.

E agora?
Boa pergunta. A arte é milenar, surge com o homem nas cavernas representando seu dia em pinturas nas paredes. A representação, a arte gráfica, o jogo de cores, luz e formas nascem espontaneamente pela necessidade de expressão e identificação. O homem é homem porque se vê no outro e o necessita para existir. Para ser quem ele deseja ser. Desejo e realização fazem parte do instinto humano. Nos reinventamos na reinvenção de nós mesmos. Somos uma mistura infinita de tudo e do todo e queremos mais. O mundo retornará, você vai ver. De máscara, álcool gel e abraço. Os abraços serão documentados como formas de expressão consolidadas de amor. O toque será arte, a vida ganhará novos significados assim como um filme feito quarenta anos atrás e revisto com outros olhos hoje. O corpo continua sendo o maior instrumento artístico. Cachoeiro não fica para trás nessa conjuntura. A Praça de Fátima, o Dienner’s Bar, a mesa do Mourad’s, a calçada do Guandú serão o novo Teatro Rubem Braga, o novo palco, a nova ribalta. O aplauso virá pela necessidade e agradecimento. Haverá vida acontecendo novamente, finalmente.

“A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide me inclinei, peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais adiante e disse em voz baixa: Estou modificando o Saara. O ato era insignificante, mas as palavras nada engenhosas eram justas e pensei que fora necessária toda a minha vida para que eu pudesse pronunciá-las.”

Atlas - Jorge Luís Borges


***

Esfarelam-se as palavras no soprar do tempo. Tantos textos já foram escritos, tantas palavras pronunciadas. Quantas vezes sentar-se diante da folha de papel, da maquina de escrever, do computador, quantas vezes se prostrar frente à ideia esquecida, à palavra mal lembrada... Ainda ser surpreendido com as lembranças dos ontens. Em silêncio, o homem está de pé, sustentando suas décadas nos músculos e respira, vagarosamente. Diante de si, uma sala impecavelmente limpa. A organização sempre lhe aprouvera. O homem de pé contempla. Há jornais, revistas, papeis com anotações diversas, um copo d’água e livros que reservam vidas inteiras cheias de histórias. Há mais histórias ali do que na história de muita gente.

Certamente, histórias muito mais interessantes. Preciosidades guardadas numa grande velha estante de madeira nobre, que também já viu e ouviu muita coisa. O homem olha. Respira profundo frente sua herança, coletânea invejada por muitos que chegam à sala numa visita ao velho amigo. Ao lado, uma ordem de CDs, DVDs, vinis e algumas outras publicações que hora ou outra também foram ou serão de interesse para eventual assunto. O teto é alto, revelando a casa antiga, joia daquela cidade mal fadada.

É neste templo que os amigos olham as palavras novas que serão ditas. Aquilo que irá vir a ser. Sentam-se os amigos do homem no confortável sofá e degustam aquelas descobertas contemporâneas, como quem investiga um deserto em busca de uma nova espécie. No lugar da lupa, a caneta vermelha. No lugar do chapéu, o ventilador de teto compondo a trilha sonora daquele momento. Os encontros se dão com frequência, embora os encontros oficiais se deem de dois em dois meses. Eles estão em três e há um filho para parir. O ventre pertence a três humanos, inoculados por diversas pessoas. Ao nascer, o filho dessa orgia sai para o mundo como um bezerro que já nasce caminhando, aprendendo nos primeiros minutos de vida a ser dono de si. È a palavra sem rumo como água, sem poder ser presa por qualquer mão. Tem gente que quer falar. Tem gente que quer ouvir. Tem gente que precisa ouvir. Tem gente que quer ler, precisa ler, precisa aprender. Os pais tem pressa. Um filho nasce. O outro já está por vir. O homem observa. Contempla aquele ciclo diante dos amigos, naquela velha sala, ao lado dos livros seus.

O vento sopra lá fora. Samambaias sacodem suas mil folhas e seguem a direção da terra. É fim de tarde e sete ou oito gaivotas vão rumo aos galhos do rio. Ao sentir a brisa que corre, o homem não hesita: - com licença -, diz aos parceiros de sala. Toma o copo d’água nas mãos, arrasta a sandália em direção à porta e contempla a paisagem de todo fim de tarde, privilégio que pode ter de sua varanda.
Há dez anos, essa rotina se repete. Há dez anos, publicar sua revista – que também é dos seus pares -, é como fazer, parir e ver seu filho evoluir. O homem respira, aliviado. Fez-se o bem. O homem purifica-se. O homem sorri. Naquele momento, Fernando se sente vivo.

* Para Fernando Gomes, editor da Revista Cachoeiro Cult.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Sobre verdades e encontros

Grupo Imagens de Teatro dá sentido novo à peça “Dois Perdidos numa Noite Suja”

Os atores Aluísio Barbosa Filho e Fábio Frota


Não há espaço para a fantasia. É tudo realidade. Essa afirmação está valendo para a obra completa de Plínio Marcos (1935-1999), dramaturgo que trouxe o beco, o cárcere, o sujo e o inutilizado para a cena principal. E não é difícil dizer que vale também para o trabalho do Grupo Imagens de Teatro de Fortaleza/CE. Sob a direção de Edson Cândido, os atores deixam suas idiossincrasias de lado para se encherem de rua, prostíbulos, mercados e formarem homens e mulheres reais, de verdade.

Em “Dois Perdidos numa Noite Suja”, o clássico se remonta e ganha novo tempo nas mãos do grupo. Não há referência nos famosos filmes de mesmo título (1970, por Braz Chediak e 2002, por José Joffily). A cena está próxima ao público, solução cênica encontrada por Cândido em seus espetáculos anteriores como “Navalha na Carne” e “Dr. Qorpo”. O recurso, que faz o público criar uma empatia ainda maior sobre os personagens, os elementos cênicos dispostos no cenário e a dramaturgia, funciona bem nas obras de Plínio. Aliás, antes de falar sobre o espetáculo, vale a pena citar mais caraterísticas que o grupo desenvolveu e o público sempre irá assistir ao encontrar as obras do “Imagens”: a cena começa sempre antes do público chegar (do hall de entrada, antes de entrar, não estranhe caso escute gritos, músicas, batidas, gemidos, xingamentos, correria...). Outro signo: após assistir essas obras, bata um papo com elenco e direção e verás que a sala de ensaio não foi o suficiente para a montagem. Sempre é preciso ir a lugares onde a história se passa e viver aquele local. São puteiros, mercados municipais, cinemas pornôs, clínicas psiquiátricas e prisões. Observa-se, anota-se, absorve-se, reinterpreta-se. Sob a luz da cena, cabe aos atores dar novo sentido ao que foi registrado.

Em “Dois Perdidos”, os atores Fábio Frota e Aluísio Barbosa Filho dão conta do recado e aguentam o tranco. O texto não é fácil. Ali, Plínio passeia com excelência entre a intensa introspecção e um alto grau de violência física e psicológica, atravessando um lugar de reflexão política e social brasileira, ou melhor, humana. Não há coxia e os poucos elementos ali presentes – atenção para a estátua de São Jorge, santo protetor de Plínio Marcos – logo dão espaço para o sapato que Tonho tanto deseja e Paco tanto ostenta. Eis o conflito.

Entretanto, o grande trunfo do trabalho são as atuações dadas pelos atores e o caminho que a direção seguiu. Logo acima, citei o método de trabalho do grupo. Esse é o grande recurso, utilizando com inteligência e profunda delicadeza nessa peça. O suor que escorre pelo rosto incessantemente, a respiração ofegante, o choro rasgado, o grito atordoante e os olhos cheios de brilho se unem para ativar o gesto, a ação: querer um sapato. O que uma vontade de querer algo pode resultar? Este é um espetáculo de fala de vontades, de verdades: cada um tem a sua e não, necessariamente, dependem da do outro para existir. Quando dependem, conflitos podem aparecer e o resultado pode não ter retorno. Este é um espetáculo sobre verdades, as de todos nós e que são escancaradas por dois ótimos atores dirigidos por um ótimo diretor durante pouco mais de 60 minutos. Este é um espetáculo para não ter medo, apesar dos medos que nos fazem indivíduos. É preciso coragem para fazer o trabalho que o Grupo Imagens de Teatro faz.

Setembro de 2015

Breve ensaio sobre o trabalho do ator no espetáculo Chico Prego, de Nysio Crysóstomo

Toda vez que vejo um ator iniciante, me coloco facilmente no seu lugar. Em parte, porque acho que comecei há pouco tempo ou, melhor dizendo, ainda sinto as sensações do início toda vez que vou trabalhar e, apesar de já ter feito uma quantidade bacana de atividades, lembro com muito frescor das primeiras aulas de teatro na escola e nas primeiras iniciativas num palco. Os pontos em comum estão quase sempre presentes nesses atores que vejo começando: a histeria ou histrionismo são válvulas de escape para chegar a uma intenção, uma emoção, porque o silêncio, a pausa e a lentidão ainda são difíceis de alcançar; gestos brutos e grandes, tentando mostrar para alguém alguma expressividade (mãos que não param de gesticular, passos incertos de um lado para o outro, uma máscara facial ainda em estado bruto...), uma vontade de querer aprender que há em poucos atores com mais de dez anos de carreira, uma energia incontrolável e avassaladora de querer fazer mais e mais, olhos brilhantes, pele linda e uma aura que só a juventude pode oferecer.

Dito isso, preciso dizer que esta é uma observação muito minha, que ando vendo agora, depois de, como disse, já ter feito na vida algo do exercício cênico. Exercícios que incluem o “olhar para si mesmo”.

Em 2015, fui convidado pela Cia. Makuamba para participar do espetáculo Chico Prego. Convite aceito e foram mais de quatro meses de ensaio em um espetáculo que já existe desde 2013. É um espetáculo que conta a história da Insurreição de Queimados na região do que hoje é a Grande Vitória, mas também da cultura negra, da identidade de um povo e de uma sociedade que ainda não aprende com suas hipocrisias e não se lembra da própria memória. A peça é um documento importante para o estado do Espírito Santo e para o país. Ao realizar o espetáculo, interpreto três personagens – nobre, diabo e capitão da mata – e, nos intervalos entre uma interpretação e outra, toco instrumentos, manipulo elementos cênicos, observo. É esse observar que me chama muito a atenção.
Há em muitos atores um frescor da iniciação que me parece o grande trunfo do elenco da peça e o grande risco também. Com atores que vão dos 24 aos 71 anos, é possível ver o trabalho em cena. Talvez porque já estou imerso no espetáculo, consigo ver o ator se colocando à disposição. Interessa ver quais ferramentas estão sendo colocadas e quais as soluções que o ator encontra para dizer uma fala, andar de um ponto ao outro do palco, manter a tensão que a história pede. O diretor e dramaturgo Nysio Crysóstomo construiu um esqueleto, colocando os atores, as falas e as intenções. Memorizadas, o ator tem liberdade para criar o que quiser dentro desse formato pré-estabelecido. E essa liberdade realiza a magia de cada apresentação que a faz acontecer ou não.

O que vejo são três relações:
- Corpo/Tempo/Espaço
- Corpo/Tempo
- Corpo/Espaço

Baseados no Cantar/Dançar/Batucar da cultura popular africana, os atores usam as três relações de forma certa, mas nem sempre acertam a hora de usá-las devidamente. É como um jogo de encaixar o quadrado na forma quadrada. Às vezes, o ator coloca o quadrado na forma triangular e luta para encaixá-lo ali dentro, sendo impossível, pois as formas não são as mesmas, mas o ato de colocar um objeto numa forma é a ação correta. Ou seja, se entende a regra, mas ela não é executada com exatidão. Por algumas vezes, a vontade de querer fazer – o frescor, a energia e a vontade de querer fazer que cito no início do texto – chamam tanta a atenção quanto o leve toque canastrão que uma fala ou outra pode soar, um grito exacerbado ou, talvez o que mais me chame a atenção, a fração de segundos em que uma ação demora para ser realizada. Há de se pensar no que é o tempo para o ator. Stanislaviski já dizia que o mundo da cognição deve passar pelo campo de atenção total para que este universo imaginário ganhe consciência. Criar, imaginar, criar, pensar, exercitar, elaborar, respirar, pensar, criar, experimentar, tomar coragem e, finalmente, fazer. Uma piscada de olho, um gesto mínimo, um átimo de respiração são ações que podem durar o tempo de uma eternidade na cabeça do ator. Um processo de elaboração que, talvez com a experiência nos palcos, dure um tempo mais curto. Na hipótese de que, se os dez atores em cena no espetáculo CHICO PREGO encurtem esse tempo e os intervalos entre uma ação ou outra, temos em cena uma só fluidez nos caminhos da interpretação. Cada um é um só. Cada um, junto, torna a encenação uma unidade. Mas há um frescor e uma vontade que pertence ao grupo, ao diretor e a cada um, como se percebe no trabalho realizado em cenas específicas, montadas para cada personagem.

Podemos ver, por exemplo, o excelente uso da ferramenta “voz” no trabalho de Monique Rocha nesse espetáculo que também se define como um musical. A voz potente é uma ferramenta usada ao seu favor em momentos em que sua personagem é estuprada e morta – spoiler – ou quando faz parte do coro das lavadeiras. Essa voz ganha substância quando um texto perpassa pela cantoria e reverbera no olhar e na proximidade do acontecimento com o público. Toda a carga emocional do espetáculo também é ferramenta trabalhada por nós, elenco, haja vista que a história é dramática, tange à pele da maioria dos que estão em cena – negros ou descendentes de – e oriundos de bairros ou cidades que carregam na história o acontecimento de Queimados ou até a própria luta dos negros na história do Brasil. Há um leque de possibilidades a ser explorado e quase sempre, muito bem utilizados.

Nill Shaefer também tem a voz a seu favor, uma voz bonita e potente, mas também um corpo que lhe dá agilidade, força e impulso que só um corpo negro tem. O corpo negro, como sabemos, tem muito mais resistência à dor e ao esforço físico. Nill joga isso para a cena com beleza, mas possui o que observei lá atrás: frações de segundo que atrasam uma ou outra ação e que tiram o realismo da cena, passeando pela linha sensível do falso, do irreal, do natualismo e do exercício cênico. Ao final, resta-nos observar a atividade desenvolvida. Esta linha é cada vez menos transitada pelo ator conforme o número incontável de ensaios e apresentações.

José Augusto Loureiro possui décadas de experiência no teatro e no cinema e leva essa carta na manga para a produção. No papel de um padre que promete a alforria aos escravos em troca da construção da igreja, consegue máscaras faciais que a idade lhe permite, tempos favoráveis para a execução de falas graves e sensíveis e uma fina ironia para jogar com as propostas da dramaturgia que colocam todos os personagens em campos reais e abstratos para contar uma história envolta pelo sincretismo religioso.

Eu mesmo me vejo em linhas tênues. Meu diabo foi construído sob a sombra do bufão, dos estudos da esquizofrenia, da ironia e do riso. Entretanto, a cada ensaio e apresentação, essa construção se mostra não mais que uma caixa de ferramentas onde eu devo tirar, usar, colocar de volta, mesclar com outro instrumento, guarda-lo, experimentar um outro... ou seja, a cena do diabo é feita por mim em absoluta experimentação e improvisação, usando apenas como certeza o texto que devo usar e o tempo em que devo usá-lo. Nysio chama isso de esqueleto, construído comigo para essas horas em que devo falar e como devo falar. Depois, fico livre para colocar a carne nesse osso, da forma como eu quero. Faço isso literalmente, toda vez, numa insegurança arriscada, louca e de total exercício teatral.

Não vou me prolongar mais na descrição de uma visão muito particular de como entendo o trabalho de cada ator nesse espetáculo. São pontos de vista muito particulares e acho até mesmo que esse não é um texto sobre o espetáculo, mas um desabafo sobre o papel em forma de análise. Creio que é um trabalho belíssimo e que, além do crescimento de cada profissional na peça, vale a pena pensar no crescimento de cada profissional na vida. O que se leva, o que se constrói e o que se exercita, sobretudo. O processo é contínuo e não para. Sigamos em atividade. Axé!







Fevereiro de 2016.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Progresso

João era cosmopolita. Vivia de cidade em cidade, de capital em capital em busca do neon, das luzes artificiais que queimam a noite, pele e neurônios. Apesar do nome simples – dado pela mãe em homenagem não ao personagem da Bíblia, mas ao avô do qual era fã -, tinha hábitos noturnos: acordava tarde; estudava, quando preciso e com prazer, madrugada adentro; flanava por viadutos para ver corpos deformes desfilando pelas ruas, caindo pelos becos, cheirando, fumando, injetando, fudendo, matando. Via tudo e se inteirava de que tudo era ciclo e prazer. Queria novos planos, novas identidades e essa busca o fazia sorrir. Quando precisava ver a mãe, ia ao aeroporto e fazia a ponte aérea. Não sentava na janela porque as nuvens eram tédio. No corredor, às vezes. O vai e vem das pessoas lhe agradava. Mas a poltrona do meio era a preferida, apertada, mãos que tocavam mãos silenciosamente, ombros, o nada da poltrona a sua frente também lhe agradava. Era estranho, o João.

Dia desses, teve que acompanhar sua mãe à Cachoeiro. Sua avó morria. Não foi difícil para João ir à cidade de sua família materna. Ele, metropolitano, numa cidade interiorana, parecia mistura peculiar. Atirou-se num ônibus, tomou duas doses de Dramin para não encarar a paisagem da janela onde foi obrigado a se sentar. Desembarcou na cidade e suou bicas. Era quente, Cachoeiro. Foram direto para o cemitério - no meio da viagem, a mãe soubera que a sua mãe havia falecido e nada contou a João que dormia despretensiosamente. Toda a formalidade cumprida de um funeral não o cansou. Só pensava em caminhar. A morte estava contigo todos os dias, nos viadutos da cidade grande, nas noites de sexo sem camisinha com desconhecidos, no trânsito errado e dos semáforos fechados para pedestres desatentos. O barulho da ambulância e a sirene da polícia eram música.

Ao caminhar, sob o sol, deparou-se com a estação ferroviária de Cachoeiro. Sentou-se na beira da calçada, bem elevada comparada ao nível do asfalto. Sentou-se de costas para a construção, olhando para o movimento fraco dos poucos carros que passavam no local onde, dizia sua mãe, há tempos não passava um trem sequer. Agora a cidade era outra e ele nem sabia, jamais havia estado ali para assistir a história do local. Sentou-se e viu.

Seu Miguel tinha 87 anos. Foi ferroviário, conhecia cada pedaço de cada trecho de trilho e de cada metragem de uma locomotiva. Era contratado vitalício pela prefeitura, pela sua experiência, seu exemplo de vida, como louvavam. Gerenciava o museu ínfimo que guardava sete ou oito peças achadas por desconhecidos do que outrora fora ali uma estação de trem. Chegou, tirou as chaves do bolso esquerdo e ao abrir o portão de ferro, caiu e morreu. João viu tudo. Ao bater a cabeça no chão, Seu Miguel formou uma poça com seu sangue que escorria até atingir os pés de João. Seus olhos riram.


João estava em casa. A morte era o progresso chegando naquele instante na estação.



Maio de 2015

Por que falar a poesia? Por que poetizar a fala?

São tempos difíceis, de caminhar na corda bamba. À beira do abismo. Há uma poeira indecifrável sobre nós cuja matéria respiramos e não temos controle de sua inoculação. São tempos imperdoáveis estes. Acordar e dormir todos os dias descompassado. Há tempo para respirar? Há lugar para a ideia, para o sossego, para o encontro? Há tempo para revisitarmos a matéria da qual somos feitos? Afinal, não somos feitos de pedacinhos, de encantamento, de lágrimas e endorfina?

Há.

Pois precisamos nos rever, nos entender e nos fazer valer. Confirmamos nossa existência constantemente quando afirmamos ou negamos algo, quando estamos com alguém, quando nos alimentamos e experimentamos o novo. Há espaço para o novo. O novo feito e refeito por nós mesmos. O novo. O novo estado de poesia.

Aconteceu no dia 31 de outubro de 2015, em Cachoeiro, a primeira edição do Festival Nacional Newton Braga de Poesia Falada. A ação não é inédita no país, diversas cidades já realizam suas edições próprias. Em Cachoeiro, o evento ocorre pela primeira vez neste ano. Participaram poetas e intérpretes da cidade assim como de Vitória/ES, Bauru/SP, Uberlândia e Belo Horizonte/MG e Rio de Janeiro/RJ.

Ariadne
Yuri Westermann – Rio de Janeiro/RJ
1º lugar na categoria MELHOR POEMA no Festival

o romance de minhas memórias será breve como um suspiro
clarão de luz branca, feito a morte,
que curiosamente anunciará com o triunfo das trompas
o que fui em vida: uma orquestra muda

com a flexão das tremas e a indigestão ácida
daquele que um dia se supôs doce
o breve romance de minhas memórias será suave
e não menos solene. fleumático, feito um inglês.
embigodado como fui certa vez.

adaptado para o cinema
o romance de minhas memórias terá um jazz
como trilha sonora
piano e sax, sem nota introdutória.
logo o prólogo; daí em diante
só acordes dissonantes
e solos intermináveis que caibam num segundo

(capítulo)

já maduro, nos palcos,
o efêmero romance de minhas memórias será narrado por um velho
sentado em uma cadeira de vime, única peça do cenário,
onde o velho, cansado, entre fumaça e soluços,
recitará as últimas linhas rabiscadas
as últimas fagulhas da memória
que entre tantas teias e fios de história
ainda reflete apenas você, Ariadne

me apraz
que ao som do último jazz
o velho solitário jaz;
– déja-vu

gosto de pensar que o teatro, vazio, aplaude.

Yuri Westermann recebe o prêmio das mãos de Fernando Gomes


A noite do dia 31 foi especial, não só por celebrarmos a poesia - e os poetas que a fazem e os intérpretes que as interpretam -, mas por reunirmos o que há de mais democrático nas lavouras literárias que estão espalhadas nos cantos mais escondidos de Cachoeiro e do Brasil. Há uma qualidade interessante ao observarmos jovens e iniciantes poetas como Leonardo Nascimento, de Cachoeiro, intercambiando conhecimento com Jacqueline Salgado, de Bauru/SP. Ele, jovem estudante da Capital Secreta. Ela, renomada escritora com livros publicados por grandes editoras como Saraiva. Todos no mesmo palco, sob a mesma luz, pelo mesmo ideal.

O festival também traz o teatro como meio de linguagem desses poemas. Formas de expressão que se estabelecem muito além das palavras ditas. É o corpo, a voz, os olhos, a mínima expressão e o máximo sentimento que fazem a poesia existir por completo e sua absoluta presença. Neste dia 31 de outubro, tivemos grandes nomes do teatro cachoeirense e capixaba reunidos: Carlos Ola, Sara Passabon Amorim e Carol Areias na comissão julgadora dos intérpretes. Nelson Miranda competindo como poeta e intérprete. Maria Elvira Tavares Costa, contadora de histórias, premiada em segundo lugar na categoria MELHOR INTÉPRETE com “Cor de Rosa”. E Brenda Perim, jovem aluna de artes cênicas, cachoeirense e com apenas 18 anos, celebra seu primeiro lugar nesta mesma categoria com a poesia “Ponto de Vista” do também jovem, também de Cachoeiro, também estudante de cênicas, Marco Antônio Reis.

Ponto de vista
Marco Antônio Reis – Cachoeiro de Itapemirim/ES
1º lugar na categoria MELHOR INTÉRPRETE no Festival

A gente diz ser o que pensa que é
A gente não é o que pensa,
Quem deve pensar o que é a gente não é a gente,
É o outro

Pra cada um a gente é uma coisa
A gente não é uma coisa só,
Pra cada um a gente é varias coisas
A gente tenta se definir numa coisa só
Mas a gente sempre é diferente do que a gente quer ser,
Não da pra ser a mesma coisa pra coisas diferentes.

A gente ataca pra se defender
Todo mundo ataca,
Ninguém se defende de verdade,
A gente pensa que a defesa é o ataque,
Não é

A gente sabe que não,
A gente se engana

Sabemos disso,
Fingimos não saber,
Fingimos bem,
Muito bem
A ponto de acreditar
Acreditar ser uma coisa só

A gente só pensa na gente,
Esquece o outro
Esquece que o outro sabe alguma coisa
A gente é muita coisa,
Coisa boa que a gente não é.

Brenda Perim recebe o prêmio de Sara Passabon Amorim.
Acompanha a intérprete o poeta, Marco Antonio Reis.


E se há celebração, tradição, festa e amor à arte, há que se lembrar de nossas referências. Evandro Moreira, nosso maior poeta vivo, foi o grande homenageado desta edição. Fruto da união entre o trabalho árduo, a criatividade constante e o amor pela vida, Evandro se estabeleceu como um artista multimídia já no começo da década de 1950. Parceiro de Newton Braga, nosso poeta maior e que dá nome ao festival. Exímio pesquisador da memória cachoeirense, investigando incansavelmente os fazedores desta história, da história de um povo ao sul do Espírito Santo. Dos romances às biografias, das peças de teatro às trovas, do bate-papo político às crônicas afiadas. Evandro Moreira merece todas as loas e os aplausos de um teatro de pé.

O primeiro Festival Newton Braga de Poesia Falada se estabelece mais como um meio, um catalizador de produções lítero-artísticas. Em curadoria, formada por Fernando Gomes, Milena Paixão e este aqui, Luiz Carlos Cardoso, a árdua tarefa de selecionar os destaques de uma pequena amostra brasileira. Amostra que reflete tempos de intensa produção artística, extrema diversidade de linguagens e que se torna concreta ao vermos diferentes vozes e corpos em cena. Celebramos a tradição e o novo, o que há de se fazer, o que está sendo feito, o produtor e a produção, o encontro, o novo e o experiente. Celebramos o teatro e poesia. Celebramos a vida. A vida que há.

Novembro de 2015
Todo dia nasce o homem.
Todo dia estamos só.

Nesse momento, um ator recebe um texto nas mãos. Lê, sente, emociona-se.
Nesse momento, um dramaturgo inventa. Imagina, sonha, liberta.

Há dois segundos, uma luz se acendeu sobre o palco vazio. Uma memória se apagou. Uma palavra foi dita. Um som ecoou. A voz do ator chegou aos lugares onde nunca se pode alcançar. Nem os gregos entre colunas coríntias, nem os egípcios com os pés fincados na areia, nem os nômades dentro do gelo. A voz do ator chegou ao epicentro, ao núcleo. A palavra sonhada ganhou volume e um dramaturgo foi feliz.

Todo dia acontece um milagre.
Todo dia é dia de ser outro.

Nesse momento, setenta músculos se conectam para uma só expressão.
Nesse momento, dois olhos constroem pontes em direção ao universo de alguém.

Texto, suor e lágrimas. Braços, pernas e bocas. Estados, sentidos, texturas. Olhos, olhos, olhos. Verbo. Texto, texto, texto. Corpo, corpo, corpo. Diafragma. Pulmões, pulmões! Luz. Plateia. Silêncio.

– Façam silêncio!

Todos os dias nascem outros estados de vínculo, um ator nasce, um diretor se entende, um homem escreve uma frase, um público se forma, um teatro é destruído. Todos os dias, uma hipocrisia é derrotada, um preconceito é desfeito, um idiota insiste. Nesse momento, não há mais palavra, não há mais tempo. É tempo de sangue novo, faca afiada, sexo e combustível. É hora de se dar. De doar o vício de ser alguém. De existir. De se fazer, ser.

“De que serve ter o mapa se o fim está traçado
De que serve a terra à vista se o barco está parado
De que serve ter a chave se a porta está aberta
De que servem as palavras se a casa está deserta”

Pedro Abrunhosa



Setembro de 2015
PS: essa música me salvou em setembro de 2014.