São tempos
difíceis, de caminhar na corda bamba. À beira do abismo. Há uma poeira
indecifrável sobre nós cuja matéria respiramos e não temos controle de sua
inoculação. São tempos imperdoáveis estes. Acordar e dormir todos os dias
descompassado. Há tempo para respirar? Há lugar para a ideia, para o sossego,
para o encontro? Há tempo para revisitarmos a matéria da qual somos feitos?
Afinal, não somos feitos de pedacinhos, de encantamento, de lágrimas e
endorfina?
Há.
Pois precisamos
nos rever, nos entender e nos fazer valer. Confirmamos nossa existência
constantemente quando afirmamos ou negamos algo, quando estamos com alguém, quando
nos alimentamos e experimentamos o novo. Há espaço para o novo. O novo feito e
refeito por nós mesmos. O novo. O novo estado de poesia.
Aconteceu no dia
31 de outubro de 2015, em Cachoeiro, a primeira edição do Festival Nacional
Newton Braga de Poesia Falada. A ação não é inédita no país, diversas cidades
já realizam suas edições próprias. Em Cachoeiro, o evento ocorre pela primeira
vez neste ano. Participaram poetas e intérpretes da cidade assim como de
Vitória/ES, Bauru/SP, Uberlândia e Belo Horizonte/MG e Rio de Janeiro/RJ.
Ariadne
Yuri Westermann – Rio
de Janeiro/RJ
1º lugar na categoria
MELHOR POEMA no Festival
o romance de minhas memórias será breve como um suspiro
clarão de luz branca, feito a morte,
que curiosamente anunciará com o triunfo das trompas
o que fui em vida: uma orquestra muda
com a flexão das tremas e a indigestão ácida
daquele que um dia se supôs doce
o breve romance de minhas memórias será suave
e não menos solene. fleumático, feito um inglês.
embigodado como fui certa vez.
adaptado para o cinema
o romance de minhas memórias terá um jazz
como trilha sonora
piano e sax, sem nota introdutória.
logo o prólogo; daí em diante
só acordes dissonantes
e solos intermináveis que caibam num segundo
(capítulo)
já maduro, nos palcos,
o efêmero romance de minhas memórias será narrado por um velho
sentado em uma cadeira de vime, única peça do cenário,
onde o velho, cansado, entre fumaça e soluços,
recitará as últimas linhas rabiscadas
as últimas fagulhas da memória
que entre tantas teias e fios de história
ainda reflete apenas você, Ariadne
me apraz
que ao som do último jazz
o velho solitário jaz;
– déja-vu
gosto de pensar que o teatro, vazio, aplaude.
A noite do dia 31 foi
especial, não só por celebrarmos a poesia - e os poetas que a fazem e os
intérpretes que as interpretam -, mas por reunirmos o que há de mais
democrático nas lavouras literárias que estão espalhadas nos cantos mais
escondidos de Cachoeiro e do Brasil. Há uma qualidade interessante ao
observarmos jovens e iniciantes poetas como Leonardo Nascimento, de Cachoeiro,
intercambiando conhecimento com Jacqueline Salgado, de Bauru/SP. Ele, jovem
estudante da Capital Secreta. Ela, renomada escritora com livros publicados por
grandes editoras como Saraiva. Todos no mesmo palco, sob a mesma luz, pelo
mesmo ideal.
O festival também traz o
teatro como meio de linguagem desses poemas. Formas de expressão que se
estabelecem muito além das palavras ditas. É o corpo, a voz, os olhos, a mínima
expressão e o máximo sentimento que fazem a poesia existir por completo e sua
absoluta presença. Neste dia 31 de outubro, tivemos grandes nomes do teatro
cachoeirense e capixaba reunidos: Carlos Ola, Sara Passabon Amorim e Carol
Areias na comissão julgadora dos intérpretes. Nelson Miranda competindo como
poeta e intérprete. Maria Elvira Tavares Costa, contadora de histórias,
premiada em segundo lugar na categoria MELHOR INTÉPRETE com “Cor de Rosa”. E
Brenda Perim, jovem aluna de artes cênicas, cachoeirense e com apenas 18 anos,
celebra seu primeiro lugar nesta mesma categoria com a poesia “Ponto de Vista”
do também jovem, também de Cachoeiro, também estudante de cênicas, Marco
Antônio Reis.
Ponto de vista
Marco Antônio Reis – Cachoeiro de Itapemirim/ES
1º lugar na categoria
MELHOR INTÉRPRETE no Festival
A gente diz ser o que pensa
que é
A gente não é o que pensa,
Quem deve pensar o que é a
gente não é a gente,
É o outro
Pra cada um a gente é uma
coisa
A gente não é uma coisa só,
Pra cada um a gente é varias
coisas
A gente tenta se definir numa
coisa só
Mas a gente sempre é
diferente do que a gente quer ser,
Não da pra ser a mesma coisa
pra coisas diferentes.
A gente ataca pra se defender
Todo mundo ataca,
Ninguém se defende de
verdade,
A gente pensa que a defesa é
o ataque,
Não é
A gente sabe que não,
A gente se engana
Sabemos disso,
Fingimos não saber,
Fingimos bem,
Muito bem
A ponto de acreditar
Acreditar ser uma coisa só
A gente só pensa na gente,
Esquece o outro
Esquece que o outro sabe
alguma coisa
A gente é muita coisa,
Coisa boa que a gente não é.
Brenda Perim recebe o prêmio de Sara Passabon Amorim.
Acompanha a intérprete o poeta, Marco Antonio Reis.
E
se há celebração, tradição, festa e amor à arte, há que se lembrar de nossas
referências. Evandro Moreira, nosso maior poeta vivo, foi o grande homenageado
desta edição. Fruto da união entre o trabalho árduo, a criatividade constante e
o amor pela vida, Evandro se estabeleceu como um artista multimídia já no
começo da década de 1950. Parceiro de Newton Braga, nosso poeta maior e que dá
nome ao festival. Exímio pesquisador da memória cachoeirense, investigando
incansavelmente os fazedores desta história, da história de um povo ao sul do
Espírito Santo. Dos romances às biografias, das peças de teatro às trovas, do
bate-papo político às crônicas afiadas. Evandro Moreira merece todas as loas e
os aplausos de um teatro de pé.
O
primeiro Festival Newton Braga de Poesia Falada se estabelece mais como um
meio, um catalizador de produções lítero-artísticas. Em curadoria, formada por
Fernando Gomes, Milena Paixão e este aqui, Luiz Carlos Cardoso, a árdua tarefa
de selecionar os destaques de uma pequena amostra brasileira. Amostra que
reflete tempos de intensa produção artística, extrema diversidade de linguagens
e que se torna concreta ao vermos diferentes vozes e corpos em cena. Celebramos
a tradição e o novo, o que há de se fazer, o que está sendo feito, o produtor e
a produção, o encontro, o novo e o experiente. Celebramos o teatro e poesia.
Celebramos a vida. A vida que há.
Novembro de 2015
Novembro de 2015
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