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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Por que falar a poesia? Por que poetizar a fala?

São tempos difíceis, de caminhar na corda bamba. À beira do abismo. Há uma poeira indecifrável sobre nós cuja matéria respiramos e não temos controle de sua inoculação. São tempos imperdoáveis estes. Acordar e dormir todos os dias descompassado. Há tempo para respirar? Há lugar para a ideia, para o sossego, para o encontro? Há tempo para revisitarmos a matéria da qual somos feitos? Afinal, não somos feitos de pedacinhos, de encantamento, de lágrimas e endorfina?

Há.

Pois precisamos nos rever, nos entender e nos fazer valer. Confirmamos nossa existência constantemente quando afirmamos ou negamos algo, quando estamos com alguém, quando nos alimentamos e experimentamos o novo. Há espaço para o novo. O novo feito e refeito por nós mesmos. O novo. O novo estado de poesia.

Aconteceu no dia 31 de outubro de 2015, em Cachoeiro, a primeira edição do Festival Nacional Newton Braga de Poesia Falada. A ação não é inédita no país, diversas cidades já realizam suas edições próprias. Em Cachoeiro, o evento ocorre pela primeira vez neste ano. Participaram poetas e intérpretes da cidade assim como de Vitória/ES, Bauru/SP, Uberlândia e Belo Horizonte/MG e Rio de Janeiro/RJ.

Ariadne
Yuri Westermann – Rio de Janeiro/RJ
1º lugar na categoria MELHOR POEMA no Festival

o romance de minhas memórias será breve como um suspiro
clarão de luz branca, feito a morte,
que curiosamente anunciará com o triunfo das trompas
o que fui em vida: uma orquestra muda

com a flexão das tremas e a indigestão ácida
daquele que um dia se supôs doce
o breve romance de minhas memórias será suave
e não menos solene. fleumático, feito um inglês.
embigodado como fui certa vez.

adaptado para o cinema
o romance de minhas memórias terá um jazz
como trilha sonora
piano e sax, sem nota introdutória.
logo o prólogo; daí em diante
só acordes dissonantes
e solos intermináveis que caibam num segundo

(capítulo)

já maduro, nos palcos,
o efêmero romance de minhas memórias será narrado por um velho
sentado em uma cadeira de vime, única peça do cenário,
onde o velho, cansado, entre fumaça e soluços,
recitará as últimas linhas rabiscadas
as últimas fagulhas da memória
que entre tantas teias e fios de história
ainda reflete apenas você, Ariadne

me apraz
que ao som do último jazz
o velho solitário jaz;
– déja-vu

gosto de pensar que o teatro, vazio, aplaude.

Yuri Westermann recebe o prêmio das mãos de Fernando Gomes


A noite do dia 31 foi especial, não só por celebrarmos a poesia - e os poetas que a fazem e os intérpretes que as interpretam -, mas por reunirmos o que há de mais democrático nas lavouras literárias que estão espalhadas nos cantos mais escondidos de Cachoeiro e do Brasil. Há uma qualidade interessante ao observarmos jovens e iniciantes poetas como Leonardo Nascimento, de Cachoeiro, intercambiando conhecimento com Jacqueline Salgado, de Bauru/SP. Ele, jovem estudante da Capital Secreta. Ela, renomada escritora com livros publicados por grandes editoras como Saraiva. Todos no mesmo palco, sob a mesma luz, pelo mesmo ideal.

O festival também traz o teatro como meio de linguagem desses poemas. Formas de expressão que se estabelecem muito além das palavras ditas. É o corpo, a voz, os olhos, a mínima expressão e o máximo sentimento que fazem a poesia existir por completo e sua absoluta presença. Neste dia 31 de outubro, tivemos grandes nomes do teatro cachoeirense e capixaba reunidos: Carlos Ola, Sara Passabon Amorim e Carol Areias na comissão julgadora dos intérpretes. Nelson Miranda competindo como poeta e intérprete. Maria Elvira Tavares Costa, contadora de histórias, premiada em segundo lugar na categoria MELHOR INTÉPRETE com “Cor de Rosa”. E Brenda Perim, jovem aluna de artes cênicas, cachoeirense e com apenas 18 anos, celebra seu primeiro lugar nesta mesma categoria com a poesia “Ponto de Vista” do também jovem, também de Cachoeiro, também estudante de cênicas, Marco Antônio Reis.

Ponto de vista
Marco Antônio Reis – Cachoeiro de Itapemirim/ES
1º lugar na categoria MELHOR INTÉRPRETE no Festival

A gente diz ser o que pensa que é
A gente não é o que pensa,
Quem deve pensar o que é a gente não é a gente,
É o outro

Pra cada um a gente é uma coisa
A gente não é uma coisa só,
Pra cada um a gente é varias coisas
A gente tenta se definir numa coisa só
Mas a gente sempre é diferente do que a gente quer ser,
Não da pra ser a mesma coisa pra coisas diferentes.

A gente ataca pra se defender
Todo mundo ataca,
Ninguém se defende de verdade,
A gente pensa que a defesa é o ataque,
Não é

A gente sabe que não,
A gente se engana

Sabemos disso,
Fingimos não saber,
Fingimos bem,
Muito bem
A ponto de acreditar
Acreditar ser uma coisa só

A gente só pensa na gente,
Esquece o outro
Esquece que o outro sabe alguma coisa
A gente é muita coisa,
Coisa boa que a gente não é.

Brenda Perim recebe o prêmio de Sara Passabon Amorim.
Acompanha a intérprete o poeta, Marco Antonio Reis.


E se há celebração, tradição, festa e amor à arte, há que se lembrar de nossas referências. Evandro Moreira, nosso maior poeta vivo, foi o grande homenageado desta edição. Fruto da união entre o trabalho árduo, a criatividade constante e o amor pela vida, Evandro se estabeleceu como um artista multimídia já no começo da década de 1950. Parceiro de Newton Braga, nosso poeta maior e que dá nome ao festival. Exímio pesquisador da memória cachoeirense, investigando incansavelmente os fazedores desta história, da história de um povo ao sul do Espírito Santo. Dos romances às biografias, das peças de teatro às trovas, do bate-papo político às crônicas afiadas. Evandro Moreira merece todas as loas e os aplausos de um teatro de pé.

O primeiro Festival Newton Braga de Poesia Falada se estabelece mais como um meio, um catalizador de produções lítero-artísticas. Em curadoria, formada por Fernando Gomes, Milena Paixão e este aqui, Luiz Carlos Cardoso, a árdua tarefa de selecionar os destaques de uma pequena amostra brasileira. Amostra que reflete tempos de intensa produção artística, extrema diversidade de linguagens e que se torna concreta ao vermos diferentes vozes e corpos em cena. Celebramos a tradição e o novo, o que há de se fazer, o que está sendo feito, o produtor e a produção, o encontro, o novo e o experiente. Celebramos o teatro e poesia. Celebramos a vida. A vida que há.

Novembro de 2015

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