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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Progresso

João era cosmopolita. Vivia de cidade em cidade, de capital em capital em busca do neon, das luzes artificiais que queimam a noite, pele e neurônios. Apesar do nome simples – dado pela mãe em homenagem não ao personagem da Bíblia, mas ao avô do qual era fã -, tinha hábitos noturnos: acordava tarde; estudava, quando preciso e com prazer, madrugada adentro; flanava por viadutos para ver corpos deformes desfilando pelas ruas, caindo pelos becos, cheirando, fumando, injetando, fudendo, matando. Via tudo e se inteirava de que tudo era ciclo e prazer. Queria novos planos, novas identidades e essa busca o fazia sorrir. Quando precisava ver a mãe, ia ao aeroporto e fazia a ponte aérea. Não sentava na janela porque as nuvens eram tédio. No corredor, às vezes. O vai e vem das pessoas lhe agradava. Mas a poltrona do meio era a preferida, apertada, mãos que tocavam mãos silenciosamente, ombros, o nada da poltrona a sua frente também lhe agradava. Era estranho, o João.

Dia desses, teve que acompanhar sua mãe à Cachoeiro. Sua avó morria. Não foi difícil para João ir à cidade de sua família materna. Ele, metropolitano, numa cidade interiorana, parecia mistura peculiar. Atirou-se num ônibus, tomou duas doses de Dramin para não encarar a paisagem da janela onde foi obrigado a se sentar. Desembarcou na cidade e suou bicas. Era quente, Cachoeiro. Foram direto para o cemitério - no meio da viagem, a mãe soubera que a sua mãe havia falecido e nada contou a João que dormia despretensiosamente. Toda a formalidade cumprida de um funeral não o cansou. Só pensava em caminhar. A morte estava contigo todos os dias, nos viadutos da cidade grande, nas noites de sexo sem camisinha com desconhecidos, no trânsito errado e dos semáforos fechados para pedestres desatentos. O barulho da ambulância e a sirene da polícia eram música.

Ao caminhar, sob o sol, deparou-se com a estação ferroviária de Cachoeiro. Sentou-se na beira da calçada, bem elevada comparada ao nível do asfalto. Sentou-se de costas para a construção, olhando para o movimento fraco dos poucos carros que passavam no local onde, dizia sua mãe, há tempos não passava um trem sequer. Agora a cidade era outra e ele nem sabia, jamais havia estado ali para assistir a história do local. Sentou-se e viu.

Seu Miguel tinha 87 anos. Foi ferroviário, conhecia cada pedaço de cada trecho de trilho e de cada metragem de uma locomotiva. Era contratado vitalício pela prefeitura, pela sua experiência, seu exemplo de vida, como louvavam. Gerenciava o museu ínfimo que guardava sete ou oito peças achadas por desconhecidos do que outrora fora ali uma estação de trem. Chegou, tirou as chaves do bolso esquerdo e ao abrir o portão de ferro, caiu e morreu. João viu tudo. Ao bater a cabeça no chão, Seu Miguel formou uma poça com seu sangue que escorria até atingir os pés de João. Seus olhos riram.


João estava em casa. A morte era o progresso chegando naquele instante na estação.



Maio de 2015

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