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terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Breve ensaio sobre o trabalho do ator no espetáculo Chico Prego, de Nysio Crysóstomo

Toda vez que vejo um ator iniciante, me coloco facilmente no seu lugar. Em parte, porque acho que comecei há pouco tempo ou, melhor dizendo, ainda sinto as sensações do início toda vez que vou trabalhar e, apesar de já ter feito uma quantidade bacana de atividades, lembro com muito frescor das primeiras aulas de teatro na escola e nas primeiras iniciativas num palco. Os pontos em comum estão quase sempre presentes nesses atores que vejo começando: a histeria ou histrionismo são válvulas de escape para chegar a uma intenção, uma emoção, porque o silêncio, a pausa e a lentidão ainda são difíceis de alcançar; gestos brutos e grandes, tentando mostrar para alguém alguma expressividade (mãos que não param de gesticular, passos incertos de um lado para o outro, uma máscara facial ainda em estado bruto...), uma vontade de querer aprender que há em poucos atores com mais de dez anos de carreira, uma energia incontrolável e avassaladora de querer fazer mais e mais, olhos brilhantes, pele linda e uma aura que só a juventude pode oferecer.

Dito isso, preciso dizer que esta é uma observação muito minha, que ando vendo agora, depois de, como disse, já ter feito na vida algo do exercício cênico. Exercícios que incluem o “olhar para si mesmo”.

Em 2015, fui convidado pela Cia. Makuamba para participar do espetáculo Chico Prego. Convite aceito e foram mais de quatro meses de ensaio em um espetáculo que já existe desde 2013. É um espetáculo que conta a história da Insurreição de Queimados na região do que hoje é a Grande Vitória, mas também da cultura negra, da identidade de um povo e de uma sociedade que ainda não aprende com suas hipocrisias e não se lembra da própria memória. A peça é um documento importante para o estado do Espírito Santo e para o país. Ao realizar o espetáculo, interpreto três personagens – nobre, diabo e capitão da mata – e, nos intervalos entre uma interpretação e outra, toco instrumentos, manipulo elementos cênicos, observo. É esse observar que me chama muito a atenção.
Há em muitos atores um frescor da iniciação que me parece o grande trunfo do elenco da peça e o grande risco também. Com atores que vão dos 24 aos 71 anos, é possível ver o trabalho em cena. Talvez porque já estou imerso no espetáculo, consigo ver o ator se colocando à disposição. Interessa ver quais ferramentas estão sendo colocadas e quais as soluções que o ator encontra para dizer uma fala, andar de um ponto ao outro do palco, manter a tensão que a história pede. O diretor e dramaturgo Nysio Crysóstomo construiu um esqueleto, colocando os atores, as falas e as intenções. Memorizadas, o ator tem liberdade para criar o que quiser dentro desse formato pré-estabelecido. E essa liberdade realiza a magia de cada apresentação que a faz acontecer ou não.

O que vejo são três relações:
- Corpo/Tempo/Espaço
- Corpo/Tempo
- Corpo/Espaço

Baseados no Cantar/Dançar/Batucar da cultura popular africana, os atores usam as três relações de forma certa, mas nem sempre acertam a hora de usá-las devidamente. É como um jogo de encaixar o quadrado na forma quadrada. Às vezes, o ator coloca o quadrado na forma triangular e luta para encaixá-lo ali dentro, sendo impossível, pois as formas não são as mesmas, mas o ato de colocar um objeto numa forma é a ação correta. Ou seja, se entende a regra, mas ela não é executada com exatidão. Por algumas vezes, a vontade de querer fazer – o frescor, a energia e a vontade de querer fazer que cito no início do texto – chamam tanta a atenção quanto o leve toque canastrão que uma fala ou outra pode soar, um grito exacerbado ou, talvez o que mais me chame a atenção, a fração de segundos em que uma ação demora para ser realizada. Há de se pensar no que é o tempo para o ator. Stanislaviski já dizia que o mundo da cognição deve passar pelo campo de atenção total para que este universo imaginário ganhe consciência. Criar, imaginar, criar, pensar, exercitar, elaborar, respirar, pensar, criar, experimentar, tomar coragem e, finalmente, fazer. Uma piscada de olho, um gesto mínimo, um átimo de respiração são ações que podem durar o tempo de uma eternidade na cabeça do ator. Um processo de elaboração que, talvez com a experiência nos palcos, dure um tempo mais curto. Na hipótese de que, se os dez atores em cena no espetáculo CHICO PREGO encurtem esse tempo e os intervalos entre uma ação ou outra, temos em cena uma só fluidez nos caminhos da interpretação. Cada um é um só. Cada um, junto, torna a encenação uma unidade. Mas há um frescor e uma vontade que pertence ao grupo, ao diretor e a cada um, como se percebe no trabalho realizado em cenas específicas, montadas para cada personagem.

Podemos ver, por exemplo, o excelente uso da ferramenta “voz” no trabalho de Monique Rocha nesse espetáculo que também se define como um musical. A voz potente é uma ferramenta usada ao seu favor em momentos em que sua personagem é estuprada e morta – spoiler – ou quando faz parte do coro das lavadeiras. Essa voz ganha substância quando um texto perpassa pela cantoria e reverbera no olhar e na proximidade do acontecimento com o público. Toda a carga emocional do espetáculo também é ferramenta trabalhada por nós, elenco, haja vista que a história é dramática, tange à pele da maioria dos que estão em cena – negros ou descendentes de – e oriundos de bairros ou cidades que carregam na história o acontecimento de Queimados ou até a própria luta dos negros na história do Brasil. Há um leque de possibilidades a ser explorado e quase sempre, muito bem utilizados.

Nill Shaefer também tem a voz a seu favor, uma voz bonita e potente, mas também um corpo que lhe dá agilidade, força e impulso que só um corpo negro tem. O corpo negro, como sabemos, tem muito mais resistência à dor e ao esforço físico. Nill joga isso para a cena com beleza, mas possui o que observei lá atrás: frações de segundo que atrasam uma ou outra ação e que tiram o realismo da cena, passeando pela linha sensível do falso, do irreal, do natualismo e do exercício cênico. Ao final, resta-nos observar a atividade desenvolvida. Esta linha é cada vez menos transitada pelo ator conforme o número incontável de ensaios e apresentações.

José Augusto Loureiro possui décadas de experiência no teatro e no cinema e leva essa carta na manga para a produção. No papel de um padre que promete a alforria aos escravos em troca da construção da igreja, consegue máscaras faciais que a idade lhe permite, tempos favoráveis para a execução de falas graves e sensíveis e uma fina ironia para jogar com as propostas da dramaturgia que colocam todos os personagens em campos reais e abstratos para contar uma história envolta pelo sincretismo religioso.

Eu mesmo me vejo em linhas tênues. Meu diabo foi construído sob a sombra do bufão, dos estudos da esquizofrenia, da ironia e do riso. Entretanto, a cada ensaio e apresentação, essa construção se mostra não mais que uma caixa de ferramentas onde eu devo tirar, usar, colocar de volta, mesclar com outro instrumento, guarda-lo, experimentar um outro... ou seja, a cena do diabo é feita por mim em absoluta experimentação e improvisação, usando apenas como certeza o texto que devo usar e o tempo em que devo usá-lo. Nysio chama isso de esqueleto, construído comigo para essas horas em que devo falar e como devo falar. Depois, fico livre para colocar a carne nesse osso, da forma como eu quero. Faço isso literalmente, toda vez, numa insegurança arriscada, louca e de total exercício teatral.

Não vou me prolongar mais na descrição de uma visão muito particular de como entendo o trabalho de cada ator nesse espetáculo. São pontos de vista muito particulares e acho até mesmo que esse não é um texto sobre o espetáculo, mas um desabafo sobre o papel em forma de análise. Creio que é um trabalho belíssimo e que, além do crescimento de cada profissional na peça, vale a pena pensar no crescimento de cada profissional na vida. O que se leva, o que se constrói e o que se exercita, sobretudo. O processo é contínuo e não para. Sigamos em atividade. Axé!







Fevereiro de 2016.

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