O F F C L I P P I N G

quarta-feira, 15 de julho de 2020

“A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide me inclinei, peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais adiante e disse em voz baixa: Estou modificando o Saara. O ato era insignificante, mas as palavras nada engenhosas eram justas e pensei que fora necessária toda a minha vida para que eu pudesse pronunciá-las.”

Atlas - Jorge Luís Borges


***

Esfarelam-se as palavras no soprar do tempo. Tantos textos já foram escritos, tantas palavras pronunciadas. Quantas vezes sentar-se diante da folha de papel, da maquina de escrever, do computador, quantas vezes se prostrar frente à ideia esquecida, à palavra mal lembrada... Ainda ser surpreendido com as lembranças dos ontens. Em silêncio, o homem está de pé, sustentando suas décadas nos músculos e respira, vagarosamente. Diante de si, uma sala impecavelmente limpa. A organização sempre lhe aprouvera. O homem de pé contempla. Há jornais, revistas, papeis com anotações diversas, um copo d’água e livros que reservam vidas inteiras cheias de histórias. Há mais histórias ali do que na história de muita gente.

Certamente, histórias muito mais interessantes. Preciosidades guardadas numa grande velha estante de madeira nobre, que também já viu e ouviu muita coisa. O homem olha. Respira profundo frente sua herança, coletânea invejada por muitos que chegam à sala numa visita ao velho amigo. Ao lado, uma ordem de CDs, DVDs, vinis e algumas outras publicações que hora ou outra também foram ou serão de interesse para eventual assunto. O teto é alto, revelando a casa antiga, joia daquela cidade mal fadada.

É neste templo que os amigos olham as palavras novas que serão ditas. Aquilo que irá vir a ser. Sentam-se os amigos do homem no confortável sofá e degustam aquelas descobertas contemporâneas, como quem investiga um deserto em busca de uma nova espécie. No lugar da lupa, a caneta vermelha. No lugar do chapéu, o ventilador de teto compondo a trilha sonora daquele momento. Os encontros se dão com frequência, embora os encontros oficiais se deem de dois em dois meses. Eles estão em três e há um filho para parir. O ventre pertence a três humanos, inoculados por diversas pessoas. Ao nascer, o filho dessa orgia sai para o mundo como um bezerro que já nasce caminhando, aprendendo nos primeiros minutos de vida a ser dono de si. È a palavra sem rumo como água, sem poder ser presa por qualquer mão. Tem gente que quer falar. Tem gente que quer ouvir. Tem gente que precisa ouvir. Tem gente que quer ler, precisa ler, precisa aprender. Os pais tem pressa. Um filho nasce. O outro já está por vir. O homem observa. Contempla aquele ciclo diante dos amigos, naquela velha sala, ao lado dos livros seus.

O vento sopra lá fora. Samambaias sacodem suas mil folhas e seguem a direção da terra. É fim de tarde e sete ou oito gaivotas vão rumo aos galhos do rio. Ao sentir a brisa que corre, o homem não hesita: - com licença -, diz aos parceiros de sala. Toma o copo d’água nas mãos, arrasta a sandália em direção à porta e contempla a paisagem de todo fim de tarde, privilégio que pode ter de sua varanda.
Há dez anos, essa rotina se repete. Há dez anos, publicar sua revista – que também é dos seus pares -, é como fazer, parir e ver seu filho evoluir. O homem respira, aliviado. Fez-se o bem. O homem purifica-se. O homem sorri. Naquele momento, Fernando se sente vivo.

* Para Fernando Gomes, editor da Revista Cachoeiro Cult.

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